domingo, 15 de novembro de 2009

A Aventura da Paz

               

O autor fotografado por Rui Iglésias na estrada da Canjala

                                                       
                                                       A aventura da Paz


*Em memória das vítimas angolanas após a mini-paz de Bicesse


     Do mesmo modo como cavalgavam D. Quixote e seu fiel escudeiro Sancho, no imortal romance de Cervantes, eu e o Rui Iglésias formávamos uma incrível parelha de solitários motociclistas, no momento em que paramos nossas pesadas motos nas proximidades da Canjala. A estrada encontrava-se literalmente deserta. Não havia vivalma nas redondezas. Olhamos solenemente em redor, toldados por uma incontida emoção. Tínhamos motivos para isso. Após longos anos de guerra civil, Angola vivia os primeiros dias de paz. No dia 31 de Maio de 1991,um acordo fora assinado em Portugal, entre o governo e a UNITA.16 anos de conflito armado tinham chegado ao fim e o povo angolano jubilava.
     Na Sexta-feira, de manhã cedo, tínhamos saído de Benguela, para percorrer 600 quilómetros até Luanda, a capital do país, com o propósito de saudarmos a vinda da paz que os angolanos tanto ansiavam. Desde a proclamação da independência nacional, em 1975, Angola não conhecera um único dia de paz efectiva. O conflito ceifara milhares de vidas e ameaçava perpetuar-se no tempo. Em muitos círculos, o sofrimento dos angolanos já era visto como uma incontornável fatalidade.
     Para chegarmos à famosa Canjala, rodámos pouco mais de 100 quilómetros, em 3horas e meia. Tínhamos deixado a família e os amigos em cuidados. Os primeiros dias passavam na incerteza quanto a eficácia do acordo assinado entre o presidente Eduardo dos Santos e o líder da guerrilha Jonas Savimbi. O mundo encontrava-se expectante com o que viria a seguir. As chagas do passado continuavam abertas e sangravam ainda. O rol de entendimentos assinados pelos beligerantes e que haviam redundado em fracasso já ia longo. Como uma maldição, após o fracasso de cada acordo, sempre se seguia uma inusitada escalada bélica.
     A decisão para fazermos a viagem nasceu na mesma hora da divulgação da notícia, através de várias emissoras que na localidade de Bicesse, em Portugal tinham assinado a Paz para Angola. Nos dias imediatos embrenhamo-nos no alvoroço dos preparativos. Os protagonistas eram duas velhas motocicletas híbridas e dois homens, eu e o Rui, intrepidamente obstinados pela ideia de viver uma aventura sonhada nos tempos em que as cidades angolanas se encontravam sitiadas por causa da guerra.
    -Será que não é cedo demais para vocês fazerem essa viagem?”- Inquieta, perguntava-me apreensiva, Rosa Maria, a minha estremada esposa. Os olhos chorosos mirando nossos dois rebentos, na inocência da idade, a brincarem ao lado da moto, engenhoca diabólica pintada de vermelho, intrusa detestada visceralmente pela minha cara-metade. A Rosita achava a nossa pretensão uma absoluta parvoíce e um risco estupidamente gratuito. –“Antes de se meterem na estrada, porque não esperam até as coisas ficarem mais claras? A vizinha ouviu que aconteceu qualquer coisa lá para as bandas do Huambo, não será melhor aguardarem mais uns dias”?- A voz pausada tinha a austeridade afectiva da censura maternal. Noutra ocasião, facilmente me convenceria, mas não naquele dia supremo, para mim e para o Rui. Eu evitava o diálogo directo, fugia encarar os olhos ávidos da minha mulher, suplicando um tens razão, desisto, não vou mais. Segundo a lógica maternal, Rosa Maria tinha motivos mais que plausíveis para ficar em cuidados. No fundo, eu também lhe dava toda a razão do mundo. Sucede que nas sociedades fechadas do interior, quem anda em motoretas grandes é automaticamente conotado como desmiolado. Para o boçal, um motociclista montado numa máquina barulhenta e um doente mental catando lixo no contentor, postos lado a lado, teriam pouca ou nenhuma diferença entre si.
     “Porra, afinal há paz ou não há?” – defendíamo-nos como podíamos dos adivinhadores de desgraças alheias, por favor não nos façam perder mais tempo. Nós estávamos decididos, por mais que agitassem as águas. O nosso momento era aquele e pronto. Do mesmo modo como está escrito nas profecias bíblicas, para nós tudo parecia fatalmente destinado para suceder assim. E assim seria.
     Íamos acompanhando com frenesi o desenrolar da situação política e militar no país nas horas que se seguiram à entrada em vigor do acordo de cessar-fogo. As notícias difundidas revelavam-se animadoras e ambos exultávamos na ansiedade da partida. Não existiam sinais vermelhos, pelo menos por enquanto. O Rui Iglésias aceitou fazer a viagem comigo. Estávamos na mesma sintonia. Assumíamos a responsabilidade do que poderia vir a acontecer, para o bem e para o mal, juramos.
     Numa apertada luta contra o tempo, íamos preparando as motos, adaptando aqui e ali acessórios recuperados nas sucatas da Polícia de Transito e do Exército. Conseguimos também um prestimoso patrocínio da Rádio Provincial de Benguela. Na época, contavam-se pelos dedos das mãos os motociclos a circularem na cidade. Praticamente não existiam concessionários de marcas de veículos com acessórios de reposição.


A MINI-PAZ E O COCKTAIL DO DEMÓNIO




Os primeiros dias de Junho de 1991, marcavam, por assim dizer, o despontar de uma nova era, plena de expectativas e discursos eivados de fervor e optimismo. Parecia estar ao alcance dos dedos das mãos concretizar o legítimo anseio do reencontro da família angolana, desavinda pela acção da guerra. Finalmente, um acordo de paz entre o governo e a guerrilha da Unita acabava de ser assinado. As pessoas começavam a acreditar que agora era para valer. Acto contínuo, os beligerantes fizeram calar as armas, em cumprimento de ordens dos respectivos altos comandos.
     A guerra havia cessado. Os políticos falavam na rádio e na televisão do imediato restabelecimento da circulação de pessoas e bens, a fim de permitir as famílias separadas voltarem a encontrar-se. Não interessavam mais as cores das bandeiras partidárias, diziam. Ficava então provado que, tanto a paz, quanto a guerra, dependem exclusivamente das acções do homem e das relações que ele estabelece com os seus semelhantes.
     Ninguém poderia suspeitar, no entanto, que naqueles momentos de euforia se marcavam, também, passos sombrios a empurrarem os angolanos para os trilhos de mais uma guerra de dimensões catastróficas. No festim contagiante da paz, nenhum angolano de senso encontrava motivo para prever o cocktail que o demónio preparava, à socapa, nos confins do inferno. Nas ruas e em todo o lado, o povo regozijava, acreditando na boa fé dos líderes que haviam trocado apertos de mão e sorrisos de concórdia, perante as câmaras de repórteres de todo o mundo.
     Haveria eleições gerais no ano seguinte. Pela primeira vez na história, os angolanos escolheriam os seus governantes por meio do voto. Pelo menos era isso que constava no texto do acordo. A paz era um facto, mas a impaciência se tornara rainha daqueles dias. Havia pressa em fazer as coisas. De imediato as tarefas começaram a ser implementadas sob supervisão das Nações Unidas, chefiada por uma representante especial, a senhora Margareth Anstee de nacionalidade e fleuma britânicas. Havia também uma “troika” de observadores formada pelos Estados Unidos da América, a Rússia e Portugal.
     Afinal, a nossa intenção de ligar as cidades de Benguela e Luanda em motocicleta não seria de todo uma ideia de aventureiros desmiolados. Tínhamos suporte político da ONU, a mais alta instância internacional.


A CANJALA E O PARADOXO DA GUERRA


     As primeiras lufadas da paz sopravam irresistíveis nas anharas ondulantes, nos vales profundos e nas montanhas verdejantes da nossa Angola imensa. Ansiávamos a primazia de poder respirá-las com sofreguidão e depois, contar aos quatro ventos, a sensação que era sentir-se livre no seu próprio país. Prevíamos escrever uma reportagem ilustrada com imagens captadas pelos cartuchos a preto e branco da minha velha câmara fotográfica. A mensagem iria parar à todos os cantos do mundo, a mostrar que a guerra em Angola fazia parte do passado.
     Tal como dois passarinhos que encontram a gaiola aberta e abalam, batendo as asas para a imensidão, nós também nos libertamos da prisão da cidade sitiada. Sentíamos a necessidade vital de insuflar os nossos pulmões com o oxigénio da Paz, porque ela é tão importante para o homem como o próprio ar que ele respira. A nossa aventura destinava-se a quebrar a barreira do medo. Como acontecia com toda a gente, nós também acreditávamos na reconciliação verdadeira. Havia um clamor profundo para que o reencontro dos irmãos desavindos acontecesse genuinamente. Eu e o Rui decidimos viajar de moto ao encontro da Paz e escolhemos transitar por um percurso onde ela esteve sempre ausente.
     Na estrada da Canjala, onde estacionámos as nossas motos, encontramos um silêncio profundo, apenas quebrado pelo canto de bandos de pássaros poisados nas palmeiras enfileiradas no meio da vegetação. Chegava também até nós o suave ruído das águas do rio correndo sobre as pedras, no meio do palmar. Em definitivo, a Canjala era um itinerário incontornável nos nossos propósitos. A região partilhava um simbolismo incrível com o paradoxo da guerra que desde 1975 grassava em Angola. Havia uma particularidade trágica na Canjala, que inevitavelmente nos atraía em sua direcção.
     Estávamos parados na emblemática e tenebrosa estrada. O quadro diante de nós possuía as cambiantes de um surrealismo impressionante. Sentíamos que havia algo mais do que simples destroços metálicos a testemunharem a barbárie acoitada ali durante o conflito armado. Na aparente quietude do cacimbo matinal daquela inolvidável Sexta-feira de Junho, sentíamos rodopiar em surdina, sobre nossas cabeças, uma sinfonia de terror gritada pelos inocentes que regaram com o vermelho vivo do seu sangue o asfalto negro da estrada da maldição. O cenário circundante era simplesmente desolador. Dezenas de carcaças de viaturas civis e militares enferrujavam ao sol e à chuva. Milhares de invólucros de balas de armas ligeiras estavam espalhados por todo o lado. Sinais da deflagração de granadas e minas picotavam a estrada ou esventravam a chaparia dos carros calcinados. A guerra mostrava ali o seu rosto de devorador insaciável.
     Decidimos ter chegado o momento para emitirmos um parecer inequivoco e concludente sobre tudo o que nos era dado a observar. Na maior das calmas abeiramo-nos da estrada, com as calças desapertadas e cagamos copiosamente por cima dos invólucros das balas. Aquelas munições assassinas não matariam mais ninguém, sentenciou o Rui com ênfase. E eu apoiei, sim senhor, ficarão eternamente sepultadas no cocó. -“ Agora chega, vamo-nos daqui”.
     Deixamos o inferno para trás atolado em dois monumentais cagalhões. O ronco dos motores voltou a violentar o silêncio da Canjala. Partimos, solavanco atrás de solavanco, entre buracos de minas, esquivando toda a sorte de artefactos espalhados no caminho. O nosso destino era Luanda e ainda estávamos longe.


DUAS VELHAS BMW DESAFIAM A ESTRADA


     As nossas máquinas eram duas BMW que, após passarem pela Polícia de Trânsito, deveriam ter sido merecidamente aposentadas pelos sacrificados anos de trabalho. Por insondável capricho do destino, vieram parar às nossas mãos. Foi com essas velhas senhoras que decidimos viver a aventura da paz. Dada a falta de acessórios de reposição de origem, as nossas motos sofreram espectaculares enxertias e passaram a ser genuinamente híbridas. Oriundas da antiga RFA, as motocicletas trabalhavam agora com pedaços da Ural da ex-URSS, da Honda japonesa e por ai adiante. A minha tinha anéis de Volkswagen nos êmbolos dos cilindros, aplicados pelo Rui Iglésias.
     Em termos técnicos a viagem começou sem qualquer problema. Aceleramos entre Benguela e o Lobito, vendo o tapete negro rolar vertiginosamente debaixo das rodas das motos apetrechadas com provisões de emergência, acessórios e ferramentas. Tudo corria conforme o nosso plano, as motos estavam a corresponder plenamente. Continuamos na mesma toada até um pouco depois do Lobito. Logo a seguir tivemos de reduzir a marcha. Passado o desvio para a barragem do Biópio, começaram as primeiras dificuldades. Repentinamente surgiram buracos onde recentemente tinham deflagrado minas anti-carro e aqui e ali começamos a ver viaturas carbonizadas. Eram as marcas da guerra. Na zona do Colango fomos obrigados a reduzir a velocidade para níveis mínimos, até 5 km por hora. Em determinado ponto, fomos obrigados a enveredar por um atalho, pois era impossível prosseguir pela via principal. Encontramos algumas pessoas caminhando ao lado da estrada, com imbambas à cabeça. Levavam crianças assustadas pelas mãos. Os pequenos tinham evidentes sinais de subnutrição. As mulheres sorriram surpreendidas pelo ronco das motos e nós íamos respondendo com acenos prazenteiros, o que nos fazia ganhar ânimo para continuarmos a rolar. O desafio começava de facto a ser vencido. Poucos dias atrás era impensável viajar assim por estas bandas.
     De vez em quando parávamos em pequenas aldeias para fotografar e conversar com as poucas pessoas que encontrávamos. Eu e o Rui procurávamos deixar sempre um abraço fraterno. Em alguns sítios ainda imperava um ambiente de abandono. Vimos pessoas com o desalento estampado no rosto. Noutros locais encontramos a vida a renascer timidamente, muitas cubatas estavam a ser reerguidas e cobertas com capim novo. Onde dias antes havia destruição e dor, começava a despontar a esperança. Um pouco antes de descermos o morro do Quicombo, na província do Kuanza-Sul, passamos por uma aldeia completamente abandonada. Aparentemente tudo estava intacto. As casas cobertas de capim alinhavam-se com esmero numa pequena encosta. Paramos as motos esperando algo, qualquer sinal que denunciasse presença humana. Mas nada. Nem um grito, nem um latido sequer. Apenas um silêncio pesado e doloroso a encher o ar. Num embondeiro próximo, uma nduva soltou acordes ao vento chamando o companheiro distante.
     Inspeccionamos rapidamente a zona e chegamos a imediata conclusão que a aldeia estava provavelmente minada, por isso tinha sido abandonada pela população. Não era aconselhável aproximarmo-nos mais. Apenas umas fotos à distância para constar e aceleramos para Norte.
     Acercamo-nos da cidade do Sumbe por volta das duas da tarde sem problemas técnicos de gravidade, mas as imagens que viramos durante a manhã calcorreavam desordenadamente as nossas mentes. O Sumbe representava a fronteira entre o mau e o bom asfalto. Teríamos oportunidade de assentar as ideias a fim de enfrentarmos a derradeira etapa. Reabastecemos as motocicletas e apetrechamos os alforges com pão fresco e refrigerantes que só viríamos a consumir próximo de Porto Amboim. Esperávamos atingir Luanda no início da noite, conforme constava no nosso plano de viagem. Depois do rápido repasto retomamos a marcha. Aumentamos a nossa média para próximo dos 120 /kms por hora, aproveitando ao máximo o estado da nova estrada. A velocidade exigia maior concentração, mas mesmo assim íamos desfrutando as paisagens lindas nas margens do rio Longa. O pôr-do-sol encontrou-nos no Cabo Ledo, altura em que aproveitamos para dar uma pequena olhada pelos veículos. Seria a derradeira revisão. Luanda estava a pouco menos de cem quilómetros, com boa marcha poderiamos fazer uma hora. Contudo, a nossa ânsia em chegar, desvaneceu quando nos apercebemos de milhares de matrindindes espalhados pelo capim que ladeia a estrada. A melodia familiar do seu canto enchia o ambiente. Foi um matar de saudades e uma fugaz recordação dos saudosos tempos da nossa meninice. O pernilongo matrindinde era figura típica em Benguela, mas de repente deixou de ser visto. Teria também metido o pé na estrada como nós? Gracejamos com vontade, mas era altura de partir.
     Com as primeiras sombras da noite cobrindo a estrada começamos a aproximar-nos da capital. Víamos ao longe as luzes da cidade palpitante cintilarem como estrelas a guiarem o nosso destino. Nas proximidades do Futungo de Belas a máquina do Rui engasgou sem combustível. Não tínhamos nem um litro na reserva. Encontrávamo-nos parados quando fomos abordados por uma patrulha da guarda presidencial. Os soldados pareciam estranhar ao verem as motos e seus apetrechos. “ Quem são vocês e de onde vêm?”, gritou o oficial. “ Somos jornalistas e estamos a vir de Benguela”- ripostei. “O quê? Estão a vir de onde?”- exclamaram espantados os militares. Aproximaram-se incrédulos com lanternas e confirmaram admirados. O chefe da patrulha ofereceu-nos ajuda, mas nós já tínhamos achado a solução. Esticamos uma corda que trazíamos na bagagem a unir as duas motos. E foi assim, como Dom Quixote e seu fiel escudeiro Pancho, cavalgando temerariamente, que entramos em Luanda por volta das sete e meia da noite. O nosso sonho estava realizado, embora ainda tivéssemos de realizar a viagem de regresso, isso era de somenos importância naquele instante. Terá sido uma aventura desnecessária? Mais de 18 anos depois, continuamos a achar que não. Simplesmente nos negamos ser prisioneiros do nosso próprio mundo. Apenas isso e nada mais. Dois dias depois, a imprensa noticiava que dois homens tinham quebrado a barreira do medo nas estradas de Angola.

0 comentários: