quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Guerra Não Come Pão, Camaradas!

O autor fotografado por Kito Neves da Angop por
cima de um BMP-1 das FAA durante a ofensiva do
Huambo em 1994, no Ukuma


                             

A GUERRA NÃO COME PÃO, CAMARADAS!


      No final de Dezembro de 1998, o principal teatro da guerra civil em Angola estava focalizado num triângulo formado pelas províncias do Huambo, do Bié e de Malange, no planalto central e se estendia, depois, sob a forma de guerrilhas, para regiões distantes, como o litoral de Benguela no centro, a província da Huila mais a Sul e as duas Lundas, no extremo nordeste. Trata-se de um território com uma superfície maior que Portugal e Espanha juntos. Desde o início do mês do mês de Natal, ocorriam pesados combates nos arredores de Vila-Nova, Bimbe e Nova-Aurora nos acessos para o Bailundo na província do Huambo, bem como nas faixas do Kunje e Cunhinga (ex-Vouga), em direcção ao Andulo, na província do Bié. Encontravam-se envolvidos nas escaramuças, numa escalada sem precedentes, tanques e artilharia de grosso calibre. O desfecho da guerra, inicialmente tido como uma questão de poucas semanas, caía num impasse, no momento em que o ano de 1998 chegava ao fim. No cenário dos confrontos, a situação permanecia confusa.
     Cheguei ao Huambo num cargueiro Antonov russo carregado de bombas e munições. Encontrei o Kito Neves, repórter da Angop, um dos poucos jornalistas que se encontrava na zona. Num cinzento fim de tarde de janeiro de 1999, conseguimos finalmente a almejada autorização do Estado-maior General das FAA, no próprio comando do Huambo. Antes do anoitecer Eu o o Kito fomos levados para o regimento, que se encontrava entrincheirado na zona do Cruzeiro, na estrada para o Kuito. Recebemos duas capas de chuva e misturamo-nos aos milhares de soldados, cujo destino era a zona de combate nos arredores de Tchicala-Tcholoanga. Toda a região se encontrava a ferro e fogo. Dias antes, em plena semana de natal, duas aeronaves “Hércules” ao serviço da missão da ONU haviam sido abatidas.
     O que se iria passar era uma incógnita, mas o perigo pairava no ar. Os militares alertaram-me dos riscos que corria.” A guerra não come pão, meus senhores, cuidem-se”. Eu estava ali como correspondente de guerra, por enquanto em carne e osso, diluído na disforme massa bélica a serpentear a madrugada do planalto central.
     Poderia considerar-me um jornalista sortudo, ou apenas mais um homem marcado para o último “click” da vida? Tocava as câmaras a tiracolo, mas meus dedos frios tinham perdido a sensibilidade. Dei comigo a tartamudear para os botões: Calma homem de Deus! És apenas um jornalista e vais reportar a guerra na sua própria morada! Com um pouco de sorte, poderás até filmar o diabo a assar sardinhas nas brasas do inferno! Tens os teus mestres de eleição e eles não te abandonarão: Jean Lartéguy acena-te das muralhas de Israel. Nada de mal se passará. Com uma palmadinha nas costas profetizará também que te encontras apenas numa fase de deslumbramento perante a acção pura, deves seguir em frente. Mais tarde, viverás uma evolução intelectual e te aproximarás da visão racional e imparcial do sentido da própria acção. Do caos de Saigão, antes da entrada do “vietcong”, enquanto beberica dois dedos de wiskhy, Câmara Leme alerta-te que para reportar a guerra, é necessário ficar entre os soldados que a estão fazendo. Quando se fecharem as contas do conflito, não terás motivos de te queixar por aqui teres andado! Terás muitas histórias para contar e seria bom que as contasses bem. Por enquanto, cuida de sobreviver e não deixes bala ou estilhaço de bomba chamuscar o brilho da tua careca!
     Iniciamos a marcha barulhenta para Vila Nova envolvidos pelo manto escuro da noite. Sob um alvoroço incrível, começamos a atravessar a cidade entorpecida pelo medo, com um regimento pronto a entrar em combate. É um princípio da própria guerra. As colunas partem sempre pela madrugada, como se essa fosse a hora suprema para um ritual sagrado. Cai sempre uma chuva teimosa nas trevas dessa hora.
     Assustada com o tilintar dos anéis da enorme serpente metálica, Huambo não dorme. Entalado dentro da cabine do “Unimog” pressinto os olhos esbugalhados dos civis perscrutando nas frestas das janelas, o bater descompassado dos corações angustiados palpitando no medo e na ansiedade. Engolidos pela escuridão, as silhuetas dos edifícios esventrados por metralha de outras guerras, assemelham-se a fantasmas noctívagos amaldiçoando a nossa passagem. Feixes de luz projectados pelos camiões destapam os rostos carrancudos dos artilheiros dos tanques pintados de um verde sinistro que se diluía na cor escura da noite.
     O ranger das lagartas dos tanques rompe o hímen do silêncio. No negrume da noite violentada, não mais o aroma perfumado da estufa calcorreando as escadas do vento, nem buganvílias floridas envolvendo amantes apaixonados no húmus da terra fecunda. No ar, apenas o cheiro da guerra. Uma guerra insáciável como todas as guerras, imbecil e estúpida como as guerras de todas as épocas. E de facto ela não anda longe dali e está sedenta de sangue.

2 comentários:

JAIME VICTORINO AZULAY disse...

Well Done Jaime

nando disse...

Ao ler pela 3ºa vez este tua matéria, parece que sinto cada curva da picada, o barulho imenso do velho motor cansado, as cabeçadas no espaço exíguo, o estrondo dos tiros de canhão, os olhos semiabertos de quem não dormia há dias e…. aquele calor maldito que me trazia sempre molhado , de suor ou chuva, de tal forma que muitas vezes já nem eu sabia. A grande diferença ( se é que era assim tão grande) é que em vez da caneta e do microfone eu tinha a minha velhinha kalaxe de outras guerras, o tanque era um renovado T34 de 1945. A Dipanda era candengue de nem 3 meses, exactamente no mesmo dia que escrevo estas linhas 5 de Janeiro de 1976. Tinha á minha responsabilidade muitos homens, por vezes não sabia bem quantos. Esse dia perdi vinte e quatro. Sabia dos livros e da tropa Tuga que segundo os regulamentos militares deveria ser um oficial general ou no mínimo um coronel quem os devia comandar. Mas ali estava eu no meio do nada, vinte e poucos anos , a valentia irreverente dessa idade, muita ingenuidade( quiçá inocência)e claro, gritante incompetência. Assim foi durante vários anos, substituíram-se as velhas máquinas de guerra, o armamento e também os camaradas que iam ficando pelo caminho. É por eles (por todos eles de um lado e de outro) este comentário. Foram muitos, demasiados, mas permite-me lembrar aqui no teu Blogue, que alguns eram filhos de sangue ou adoptivos de Benguela , que além de terem sido meus camaradas, me deram o privilégio de ser meus amigos.
Não sei se realmente valeu a pena, como tu dizes todas as guerras são estúpidas, mas resta-me a satisfação de que todos os que morreram, na altura pensavam que sim.