"Caminhando": uma das mais emblemáticas esculturas de Canhão
Na cidade do Lobito encontramos um conjunto de estátuas que fazem questão de resistir ao tempo, transpondo milagrosamente as vicissitudes vividas pelo país desde a proclamação da independência nacional em 1975, até a obtenção da paz definitiva no ano de 2002. Sem obedecer a qualquer critério de importância podemos apresentá-las: “Caminhando”, “Monumento à Aviação”, “O Homem do Lomango”, “O poeta”, “A Sereia dos Trópicos”. São obras de arte que permanecem nos dias de hoje como imagens de grata contemplação.
As estátuas em causa têm a assinatura de um engenheiro português, de nome Otávio Canhão Bernardes. Escultor autodidacta de rara sensibilidade (começou a fazer escultura por entretenimento aos 42 anos de idade), viveu no Lobito durante as décadas de 60 e de 70 do século passado. Com a inesperada eclosão da guerra civil, ele rumou para o Brasil onde também deixou obra, na Praça Fernando Pessoa, em Curitiba. Bernardes deixou espalhado, não só no Lobito, mas igualmente nas províncias do Kwanza-Sul e do Bié, o testemunho de seu extraordinário talento. Ao todo, tinha 14 obras em locais públicos até ao ano de 1972.
Na época estava em voga (e ainda hoje assim é em muitos lugares do planeta) o frenesi de encher as praças públicas com heróis colocados em pedestais. Canhão Bernardes partilhava da opinião que, ao fomentar-se a escultura em lugares públicos, não deveria ser com a imposição de heróis. Estes, volta e meia são derrubados, em consequência da queda dos regimes e sistemas que simbolizam. Para Bernardes, a escultura deveria significar algo mais para as pessoas, cujos itinerários se vão cruzando ao longo do dia. Um meio de aliviar, através da beleza, os percursos rotineiros entre a casa e o trabalho.
“ A escultura deve servir como veículo de encanto e de Humanidade e criar um anseio de beleza, ajudando a evolução das pessoas, à caminho de uma harmonia social”, disse o artista quando apresentou o projecto de uma escultura que viria a ser conhecida como “ Monumento à Humanidade” na capital do Bié. Bernardes deixou fixada a marca indelével de seu buril virtuoso no rosto de várias cidades angolanas.
O “Monumento à Aviação” instalado na praça defronte ao edifício do aeroporto do Lobito enaltece a audácia e o espírito de conquista do homem face ao desconhecido. Por seu turno, o “Caminhando”, que se situa numa das suaves encostas da Colina da Saudade, com vista privilegiada para a baía e para o porto, convida à exaltação dos valores simples da vida, no fundo tão importantes como as mais inquietantes interrogações existenciais.
Na época, o “Monumento à Aviação” foi considerada obra notável de engenharia, inteiramente executada no Lobito e exclusivamente com recursos técnicos locais. Os trabalhos de fundição foram realizados nas oficinas do Caminho-de-ferro de Benguela comandados pelo engenheiro Alberto Soares Ribeiro. Foi necessária muita ousadia, até se conseguir suspender, no pedestal, apenas por uma das coxas, um cavalo com 6,30 metros de comprimento do focinho até à cauda e pesando quase duas toneladas. Tal só foi possível por meio de uma barra de aço embutida inusitadamente na estrutura em bronze. O autor queria ir além de Milles na escultura “Pégaso”, na qual o cavalo rompante é sustentado por um matacão de bronze colocado no centro.
O artista recorreu ao cavalo como símbolo de transporte. E fê-lo, não como em “Centauro” ou “Pégaso”, nem tampouco em formato de flecha ou tapete voador como nos contos infantis das mil e uma noites. Mas sim como um foguetão, pesado e metálico: “ A montada teria de vencer a gravidade e mover-se para o infinito, arrastando no dorso o Homem, que o comanda”.
Correndo num galope desenfreado, o animal é domado por um destemido cavaleiro. Com uma só mão, pousada sobre o seu dorso, o homem dirige a montada para o Oeste desconhecido. Cavalo e cavaleiro vão voando do Lobito para o mar, roçando a crista altaneira de uma vaga oceânica. Uma placa brilhante regista para a posteridade: “Aos homens que, depois do mar domado, querem o infinito”.
“Caminhando”, por seu lado, embora nada tenha a realçar no que se refere à técnica empregue, mostra-nos um conjunto familiar, duas mulheres na sua lide diária, com balaios à cabeça, levando pela mão um garotelho a saltitar. Uma das mulheres apresenta o ventre proeminente, na certeza de que, com a maternidade, contribuirá para a continuação da espécie humana. Observado à distância, o grupo, em silhueta, destaca a harmonia da família, a vida vivida na simplicidade e na dignidade.
A escultura tem 2,40 m de altura e foi executada em cimento de produção local, tendo custado na época uns simples 15 contos. Foi mandada executar pelo capitão Alves Aldeia, na época presidente da Câmara Municipal do Lobito, que vira uns dias antes a maqueta do projecto. Despertaram-lhe atenção aqueles rostos, sem olhos, sem nariz e sem orelhas, pessoas anónimas que povoam um mundo sem desigualdades sociais. O presidente da câmara não exitou em mandar, de imediato, executar a obra.
"Caminhando” remete-nos a um súbito refrear no egoísmo, uma quebra na jactância de uma pretensa superioridade de uns sobre outros homens. Contemplando a singela silhueta projectada contra o sol poente, invade-nos um irreprimível desejo de compreender os outros como eles são, de sentir a sua mão na nossa, contentes de não mais nos sentirmos sós. Era esse, no fundo, o desejo do escultor.
1 comentários:
fiquei triste com a notivia. sou sobrinha por afinidade e Há cerca de 3 anos ele esteve em portugal e em minha casa com a sua esposa e minha tia, Odete.
Acontece que trocámos contactos telefónicos mas entretanto alterámos o n.º de casa. possivelmente tentaram contactar-nos sem êxito.
peço que, se vos for possível entrar em contacto com a viúva lhe transmitam o meu contacto pessoal: elsa - 90 306 65 15 (telemóvel)
o fixo, do trabalho corresponde ao geral do MDN em Lisboa. Trabalho na Secretaria Geral deste Ministério.
Muito obrigada
elsa Silva
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