terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Um Acordeão Em Lisboa

             Recomendo uma versão de Astor Piazzola no melhor tango de Carlos Gardel
     Tal como sucede em todas as capitais do mundo, Lisboa não consegue esconder os seus contrastes. Para o visitante, deambular pelo formigueiro lisboeta, é provar a sequência de um cocktail de sabores doces e amargos. Num repente arregalamos os olhos de curiosidade, noutra ocasião escancaramos a boca com perplexa indignação, mas logo a seguir sentimos os lábios rasgarem-se num sorriso de ingénua complacência.
     Encontramos a Lisboa da frieza do vidro e dos cogumelos de concreto a tentarem tocar o céu. Aqui não se sabe onde mora o sol e os espelhos das vitrinas não nos devolvem os sorrisos que ofertamos. Nas fachadas dos edifícios os reclames luminosos digladiam-se com o furor dos relâmpagos apocalípticos: “compra-me, compra-me! Sou mais forte do que aquele e mais barato que aqueloutro”! Mas existe sempre um vagido humano gritando liberdade na gélida floresta de concreto
     Certo dia, navegava perdido neste mar cosmopolita, quando, repentinamente, me vi aportado numa ilhota singela que o destino fez chegar até mim sob a forma de inebriantes notas musicais. O som vinha das entranhas de um acordeão que as mãos calosas de um velho cego faziam contorcer num canto do metropolitano de Lisboa. Estava em Entrecampos.
     Era hora de ponta. As hordas humanas fluíam aos magotes como carne empacotada, a subir e a descer das carruagens do metro, alheias aos gemidos suplicantes do artista solitário. Esporadicamente, uma mão apressada soltava uma moeda que ia anichar-se num pequeno prato que o músico tinha diante de si.
     Fui tragado pelo sublime chamamento, como acontece no mar aos marinheiros que ouvem o canto das sereias. Aproximei-me lentamente do velho. Ele tinha um rosto bexigoso e arredondado. Dos seus lábios irrequietos, pendia, displicente, uma beata de cigarro embebida em saliva escura. A sua figura divina diluía-se numa auréola de inquietante genialidade. Era como se dele não emanasse, sequer, um sopro de mortalidade, apenas espírito sereno vagando na imensidão.
     Ao vê-lo tactear o acordeão, vislumbrei a fragilidade da existência terrena a exaurir-se, sem glórias nem honras, nas teias do egoísmo desmesurado e da petulante hipocrisia. Ali, naquele instante crucial, desenhava-se a nossa angustiante encruzilhada: A vida seria ainda um sonho virgem sonhado no regaço do universo infinito, ou já a tormenta do cosmos prostituído pelos foguetes espaciais? Ou talvez fosse simultaneamente tudo e nada, massa confusa de ódio e amor, lealdade e traição indissolúveis?
     A música serpenteava no túnel em vagas sucessivas, como as ondas do mar, buscando com ansiedade a essência dos seres e das coisas. Fundia-se no útero da terra ao magma dos vulcões adormecidos que aguardam apenas o sublime instante da majestosa erupção.
     O fole do acordeão vibrava em cadência ora branda ora intensa, até ao limite virtuoso de um orgasmo sem fronteiras, o vulcão expelindo a pujante lava cor-de-fogo escorrendo pelas coxas da montanha verdejante.
     Da garganta do velho gotejavam sussurros que se iam ajustando, mansamente, à voz piedosa do acordeão. As notas musicais rodopiavam na partitura da virtude humilhada, do mesmo modo como rolam pela face dos amantes as lágrimas salgadas do amor perdido numa qualquer esquina da vida.
     Por instantes, a música ameaçava naufragar no oceano revolto da arrebatadora paixão, mas logo retornava feita espuma nostálgica atirada às praias da impossível renúncia.
     As notas graves exilavam-se resignadas, numa toada repetitiva, cadenciada no compasso das inalações sôfregas do fole, enquanto os dedos da mão direita cavalgavam as teclas como fogosos corcéis galopando livremente pelas anharas da melancolia. E de novo bramia o canto da dor indizível balançando na perfídia do mar escuro, e outra vez a harmonia branda a cobrir a areia fina do amor inocente, sem mágoas nem prantos.
     Quando finalmente se extinguiram os acordes da sinfonia divina, o velho cego ergueu ligeiramente a cabeça. Escondido sob o feltro do chapéu seboso, o seu semblante mágico banhava-se num indescritível lago de serenidade.
     Foi numa manhã fria de Inverno, que vi em Lisboa essa estrela fugaz riscando no céu o hino do amor, enquanto na terra, toldados com o fumo das armas, os mortais faziam tilintar as suas grilhetas.



1 comentários:

Virginia disse...

Pois é, foi recentemente recomendada (obrigada Verito)para escutar a musica do Astor Piazzola!!!! espantosa coincidência!!! Obrigada Maria e Jaime por terem apresentado o Jaime desde Angola para o mundo a escrever isto aquí que me faz pensar nas coisas pequenas (tao grandes como sao) de cada dia, naquelo que alguem está a procura: a serenidade...
pd: peço desculpas pelo meu portugués...