Rivalizando com a sua congénere da electricidade, a EPAL é especialista em pregar partidas aos consumidores. Para não variar, nesse dia o abastecimento de água fora interrompido sem aviso. Ou melhor, quando gritaram "áua foi", a água já tinha bazado mesmo. No bairro, as torneiras viraram tetas secas na boca dos miúdos.
Iniciou então o corre-corre com as bilhas, bacias e baldes. A miséria esquecida por instantes, num rodopio carnavalesco de crianças e raparigas. Apenas os homens não sofrem no lombo ou na cabeça os efeitos cortantes da EPAL.
- Vão vender água no camião da cisterna!, gritou uma mana com duas bilhas de vidro nas mãos.
- A cisterna não vai vir hoje, o vizinho disse vai ir no Kifangondo com o carro dele. Vamos na busca da água no próprio rio, berrou um rapaz que estava metido no negócio.
Toda a gente apoiou a idéia e o gesto prestável do vizinho da camioneta "Bedford" herdada do patrão colono. No rio, ninguém ia pagar nada.O rio é do povo, a água é do povo, ela corre por igual para todos, com a graça de Nzambi.
Assim partiram. A carrinha levou o pessoal e o vasilhame no rumo para Kifangondo. Vira aqui, curva ali, o motorista esgueirava-se matreiramente no trânsito do quase-meio-dia. Naqueles anos as estradas não estavam entupidas como os tubos de água da EPAL. A viagem seguia tranquila. O motorista ganhou tempo para lançar o olhar de lobo "vou-te-comer" na sobrinha de sorriso maroto, mas ia um garotelho empata-samba no meio dos dois.
O miúdo servir de escudo para manter as aparências na travessia do bairro, por causa das fofocas, mas depois foi quase arremessado para junto dos outros. A sobrinha ganharia, então, honras e promessas de princesa na cabine. Não era só o olhar guloso do lobo. A mão matreira deslizava da alavanca de velocidades e ia roçando as coxas da princesa. Na carroçaria da velha camioneta, alheia às conexões lúdicas na cabine, a garotada cantava. O miúdo Isaac também gritava: "vamo no rio, vamo no rio".
O chilreio dos garotos encheu o rio. As mais-velhas que lavavam roupa, muxoxaram com a impertinente chegada da caravana:
- "Xê, tunda! Vocês estão a sujar a água, mazé".
A rapaziada não lhes ligou patavina, tal como ninguém deu conta do deslize da "Bedford" para um matagal no Kikuchi, com uma primeira engrenada na coxa de velocidades da princesa. A engenhosa armadilha do "lobo-mau" aprisionara as virtudes sonhadoras da sobrinha de olhos negros amendoados. E na cabine da "Bedford" selaram a fogosa relação. Passados cinco meses redundaria em escândalo no bairro. Uma prima mais-velha da princesa lhe descobriu a barriga pejada, embarrada como uma trouxa.
Entretanto, no rio a festa continuava. Com o garrafão na mão, o pequeno Isaac afastava-se dos companheiros. A maldição do rio lhe chamava nas profundezas medonhas dos espíritos escondidos. Ele deslizava veloz. Temeroso, desafiava a água que corria, corria, para os lados do mar, sem pedir licença à EPAL. De repente alguém gritou: - "Aiué, o miúdo está a ir com a água, sukuama!".
Tarde demais! Num derradeiro adeus, viram à superfície uns dedinhos ternos, mas logo foram tragados pela vingança diabólica das águas profanadas. Estava arrancada do jardim da vida a pétala de uma flor purificada no perfume da infância. O rio levou o pequeno Isaac numa tarde de Maio. Nove meses depois, a cegonha de Nzambi trouxe um mona bebucho para a princesa de olhos marotos amendoados.
1 comentários:
Verdade ou ficção andam mesmo a morrer pessoas na conduta do Kukuxi. Já "apreciei" uns dois ou três contos mesmo de verdade que pessoas já Kapukadas se meteram a "banhar" na conduta e por pouco não apareceram "na panela" duma cozinheira.
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