domingo, 6 de dezembro de 2009

A Tia Zita e os Biocombustíveis


                    estórias do nosso mundo


     Como quem ouve uma melodia nostálgica tocada pela orquestra do tempo, lembro ouvir minha tia Zita dizer, mais de quarenta anos atrás, que, por via das desigualdades entre ricos e pobres, o mundo estava roto e não havia mais linha para cozê-lo. As tiradas filosóficas de minha falecida tia eram profundas e impressionantes para a época e para o meio deserdado em que a nossa família vivia em Novo Redondo. Acreditávamos que a preocupação de nossas mães resumia-se simplesmente à luta pela comida do dia, lavando a roupa no rio Cambongo. Nós calcorreávamos os palmares descalços, ou íamos fisgar pequenos kizutis e bagres com as inseparáveis canas de pesca de bambú fino. As nossas disponibilidades e expectativas estavam, sem remédio, reduzidas ao essencial. A vida corria numa atmosfera desafortunadamente monótona. Mas naquele ambiente, aparecia sempre a nossa titia caçula, decifrando códigos na face oculta das coisas. Crescemos ouvindo as suas inquietantes reflexões, enquanto nos íamos revezando na única camiseta de têvê fabricada em Macau, que eu e meu irmão Nelito possuíamos para ir à escola.
      Meio século depois, o futuro da espécie humana continua incerto, tal como previu a minha tia. Os estudiosos falam em dinâmicas mutáveis e complexas interdependências de consequências imprevisíveis. Noutro dia ouvi um rapaz bem parecido, falar na televisão, enquanto olhava para a sua gratava de seda vermelha, que são exigidas abordagens sistémicas da realidade circundante. Num rodopio, o “doutor” chegou a um palavrão chamado globalização. A crise vai afectar a todos, ninguém se safa, ameaçou o cangravata. Quanta verborreia para uma constatação a que a tia Zita tinha chegado pacificamente da cátedra da sua terceira classe colonial. Não se inventa mais nada. Vivemos do aperfeiçoamento de milagres originais, conforme escreveu James H. Kunstler. O mundo continua roto pelas mesmas razões dos ricos continuarem cada vez mais ricos e os pobres afundando-se irremediavelmente no abismo da miséria.
     O “fosso das desigualdades” continua e continuará a aumentar. Em mais de setenta países, o rendimento por habitante é inferior ao de vinte anos atrás.
     É arrepiante constatar que as três pessoas mais ricas do mundo são detentoras de uma fortuna que supera a soma dos Produtos Internos Brutos dos 48 países mais pobres do planeta. Cerca de um terço dos quatro mil milhões e meio de habitantes dos países em vias de desenvolvimento não têm acesso à agua potável e um quinto das crianças não dispõe da quantidade suficiente de calorias ou de proteínas, sendo que um terço da Humanidade, qualquer coisa como dois mil milhões de indivíduos, padece de anemia.
      De acordo com o professor Ignácio Ramonet, o mercantilismo generalizado traduz-se num gigantesco agravamento das desigualdades. Em 1960, os 20% mais ricos da população mundial dispunham de um rendimento trinta vezes superior ao rendimento dos 20% mais pobres, o que já era escandaloso. todavia, em vez de melhorar, a situação agravou-se vergonhosamente. Hoje, o rendimento dos mais ricos, em comparação com o dos mais pobres, passou de 30 para 82 vezes mais elevado.
      O mundo vive uma crise de alimentos, no entanto alguns países estão numa busca cega por biocombustíveis, a fim de substituir o festim do petróleo, que não é um recurso renovável, como se sabe. A produção desse combustível alternativo está a contribuir para que 100 milhões de pessoas nos países mais pobres vivam uma crise de alimentos. Jean Zigler, o antigo relator da ONU descreveu os biocombustíveis como “um crime contra a Humanidade”. Minha falecida tia Zita tinha razão: O mundo rompeu-se e não há linha para cozê-lo. Nem alfaiates.






1 comentários:

Dikó disse...

Oi Tio, adorei o blog, em especial essa entrada... Por mais que tento encontrar alguma justificacao razoável ainda é-me impossivel entender porque que as pessoas mais sábias e bondosas vao tao cedo e de uma maneira tao imprevisível...

Um Beijao desta sobrinha que lhe quer bem.
Dikó