terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Aiué, Quando Penso Em Luanda, Luanda Fica Longe

     Chegar à Luanda de automóvel. Estrada do Benfica, após subir o morro do museu da escravatura. Um pequeno tremelique nos faz abanar. Ei-la. Está ali: Luanda, a terrível. Os prédios avistam-se ao longe, coados pela distância. Muitas obras em curso, sim senhor. Mas o areal vermelho não engana.Tem musseque ainda, coberto pelo manto da miséria. Os manuais ensinam porque se emigra para a capital: em África quem vive longe da decisão  lhe esquecem com ele.
      Luanda, a nossa metrópole. Terra dos vivos e dos vivaços. Aqui o cabrito come onde está amarrado e mesmo o velho cágado sabichão não sobe à árvore sòzinho. Cidade grande. Tem gente versada nos esquemas da ginga para o fogo não apagar nos fogareiros e as crianças não quebrarem o lápis cedo. Luanda-arena de exímios gladiadores no corpo-a-corpo das cabalas palacianas que dão caminho aos faustosos banquetes familiares e clânicos, que os há. Coitados dos buamados, para eles o sol jamais brilhará. Na nguimbi  o jogo é rapido. Buamado não apanha nada. São os "Mukuakuisa", os que vieram sem nome de família e já nozencontraram. Como aceitar  nos tirarem agora? Vejam lá se isso tem  lógica. No olho!
     Diz-se que um terço da população de Angola vive aqui. Avançamos em direcção ao Rocha Pinto. O característico cheiro das coxas de frango em grelhadores caseiros, expõe o apetecido petisco luandense, importado de qualquer estranja. Não há tempo de ir à casa pitar. Os passantes são buereré. Após o petisco, uma mana de calções elásticos colados ao corpo e buluza (é mesmo buluza) decotada, convida para as competentes birras, tiradas do gelo, a estalar. Ela tem os lábios betumados com um baton roxo. Esqueceu os carrapitos que vavó fazia e agora usa cabelo pustício que lhe cai feiamente para as costas:- "Mano si quer um bardi de birra pede só, paga no fim", sorri, convidativa, maliciosa. Vende-se com cerveja à balde, ou melhor, à balde com garrafas de cerveja, que é o mesmo mas não é igual. São muitos a morderem a coxa e a engolirem o bardi.
     - Tchau mana das birra bardadas, a capital nos espera, para moer-nos as ossadas da paciência.O saco das gasosas já está preparado. Nunca falha. A bicha de carros começa a ser longa, exasperamos. Avança-se aos soluços. Vai embrulhada uma espetada de moelas e uma fresquinha, medicamento milagroso para não perder o ânimo. Os "hiaces",  autênticos predadores do tráfego nas estradas de Luanda surgem de todos os lados. Pela esquerda, pela direita, de frente, de tràs, autêntico bacanal rodoviário. Chamam "mbaias" às manobras para fugirem ao trânsito ordenado. Entram por onde quiserem, como quiserem e quando quiserem. Entram aqui e depois vão  entrar mais à frente. Quem dá as ordens é o cobrador-gritador, geralmente um garotelho com  cara suja e um maço de notas de baixo valor embrulhada nas mãos para facilitar os trocos. Esses garotos nunca guiaram uma bicicleta na vida. São eles que chamam a clientela. Têm voto na matéria. Quando gritam "mbaiaaaa !!!", o motorista não vacila, entra com o "hiace"  em qualquer buraco. O mini-autocarro está pejado de gente que aceita expor-se ao perigo dos acidentes, a troco de uns minutos ganhos. Assim os candongueiros causam os entupimentos e os acidentes.
     Chegamos em Luanda, como agora se diz; assim mesmo  as pessoas falam, mesmo pessoa que afirma ser doutor. Queria vê-los a responderem umas perguntinhas da minha professora Gracinda, que me transportou da cabunga à 4ª classe em 71, debaixo do olhar severo da gramática do Relvas. Haveria reguadas na certa, nem com caca de galinha nas mãos se safavam. Mas agora tudo na boa. Afinal sempre se fecha o ciclo da comunicação, o importante é a gente se entendé, né mêmo? Depois tem bom fato italiano, com gravata  da "Gucci" e sapatos de pele e o exuberante Land-Cruiser metalizado. E ainda por cima no jogo jogado vale tudo e tudo vale, mesmo picar no olho do outro muadié pra não fazer barreira. Tem até árbitro que assinala o penâlti, depois ele próprio marca o golo e nas calmas vai simbora com a bola, porque é dele, lhe deram na família dele e agora ninguém pode lhe cassumbular. Ele é vijú, uauééé!
Luanda tem mais. Katé.

5 comentários:

Anónimo disse...

Mas que grande "moambada" essa vida do "Kalú".Malta do "mato" não consegue sobreviver a tamanho esquema.Faço uma pequena ideia o que sofre um "Sulista" quando entra em Luanda, perde-se na confusão e perde a identificação.Aquilo é um mundo maluco.
Abraços
Reigadinha

Anónimo disse...

Texto bonito.A demonstração simples e didática que o tal acordo ortográfico já vai estar velho e decadente quando for aplicado.

Ngouabi Salvador disse...

Esta crónica tem o gosto picante das cochas de frango "eximiamente" grelhadas nos musseques desta Luanda, a cidade que se renova diariamente com novos usos e customes, vocábulos, formas de ser e de estar na vida, etc
Os meus parabéns Jaime Azulay!
Aproveito para dizer que li a sua crónica publicada no dia 6 de Fevereiro no Jornal de Angola, dedicada ao grande Valongo.Que coisa fantástica!Aquela parte da defesa do penalti do Matateu arrepiou-me e logo pensei, Meu Deus, foi mesmo um grande homem!O meu singelo tributo à ilustre personagem de benguela que foi o Senhor Valongo.

Soberano Kanyanga disse...

Que dizer dessa prosa?
Sou tão criança para me atrever a elogiar. Apenas aplausos... Os kotas falam e os putos batem palmas em reconhecimento ou aprovação.
"Kota Sombreiro", os meus aplausos yá?

Anónimo disse...

Bela crónica. É um retrato simples, directo e agradável da cidade e suas vivências.
Também tem carácter infomativo, pois que não sabia por exemplo do calão mbaia no candogueiro.
Obrigado. Estou longe do país a muitos anos e com esta crónica, por momentos senti-me lá em Luanda. Continue assim.
Abraços