Chegar à Luanda de automóvel, uma sensação única, o coração bate de verdade. Estrada do Benfica, subir o morro do museu da escravatura, um pequeno tremelique. Eila: Luanda está ali. A terrível. Assim a chamo por deferência meramente pessoal. No fundo ela também é parte de mim, para o bem e para o mal. Miro-a de relance pela janela do carro. O Mussulo flutua aparentemente impassível como um dongo esculpido na mafumeira do mar. Prédios novos anunciadores da nova era soerguem-se como lanças em direcção às nuvens, empurrando para o céu estórias de tapetes voadores tripulados pelo famoso Ali-Babá e os quarenta, pilhas de Kwanzas a esvoaçarem da caixa-forte do Bna para ermas quintas em Viana, tal como no filme. Cenas de hoje filtradas da celulóide por distâncias antigas. Chineses por todo lado, muitas obras em curso, sim senhor, vale. Mas o areal vermelho de antanho não engana nem deixa enganar.Tem musseque ainda, coberto pelo manto da miséria que o colono deixou e nós reciclamos cientificamente. Os manuais ensinam porquê em África se emigra para a capital: quem vive longe da decisão lhe esquecem m’bora com ele. Nós ingerimos com ânsia o manual completo. Muangolê tem sempre um palpite a dar, ainda que o assunto seja o programa espacial da Nasa ou uma migração de passarinhos na Gronelândia. Pior se a reunião é para decidir se os esquimós precisam de importar arcas frigoríficas da China ou não.
Luanda, a nossa metrópole. Terra dos vivos e dos vivaços. Aqui o cabrito devora onde está amarrado e o velho cágado não sobe à árvore sòzinho, lhe empurram. Cidade grande. Tem gente versada nos esquemas da ginga, caso contrário o lume apaga nos fogareiros, as panelas entram de férias e as crianças quebram o lápis cedo. E depois como é, quem nos cuidará na velhice?
Luanda, arena de exímios gladiadores no corpo-a-corpo das cabalas palacianas, caminho seguro para faustosos banquetes familiares e clânicos, que os há. Coitados dos buamados. Para eles o sol jamais brilhará e as nuvens ameaçarão unicamente temporal. As cisternas de São Pedro abrirão sem clemência as torneiras sobre a cabeça dos musseques e os entulhos de lixo nas ruelas formarão pontos de união dos deserdados. Na nguimbi é assim. O jogo é rapido, a bola saltita baliza-baliza sem parar. Buamado não apanha nada. São os "Mukuakuisa", os que vieram sem nome de família e já nozencontraram. Vamo aceitar nos tirarem agora? Vejam lá se isso tem lógica.
Diz a estatística, um terço da população de Angola vive aqui. Avançamos em direcção ao Rocha Pinto. No ar o característico cheiro das coxas de frango assado. Grelhadores caseiros expõem ao ar livre o apetecido petisco importado de qualquer estranja. Na luta pela vida não há tempo de ir à casa pitar. Os passantes são buereré. Uma mana de calções elásticos cingidos ao corpo e uma buluza (é mesmo buluza como canta o Paulo) decotada agita os monumentais seios bronzeados, assim está a convidar para as competentes birras, tiradas do gelo, a estalar. A moça tem os lábios betumados com um escandaloso baton roxo. Na certa esqueceu os carrapitos que vavó fazia e agora usa cabelo pustício que lhe cai feiamente para as costas:- "Mano, si-vucê-quê um bardi de birra pede só, dipois paga no fim". A mana sorri um sorriso de coxa grelhada, convidativa, maliciosa. Parece a mana se vende com cerveja à balde, ou melhor, à balde com cerveja, que é o mesmo mas não é igual. São muitos a morderem a coxa e a engolirem o bardi.
- Tchau mana das birra bardadas, a nguimbi nos espera para moer-nos as ossadas da paciência.O saco das gasosas já está preparado. Nunca falha. A bicha de carros começa a ser longa, exasperamos. Avança-se aos soluços. Vai embrulhada uma espetada de moelas e uma fresquinha, medicamento milagroso para não perder o ânimo, conselho de amigo avisado nas andanças luandinas. Os "hiaces", autênticos predadores do tráfego nas estradas surgem de todos os lados. Pela esquerda, pela direita, de frente, de tràs, autêntico bacanal rodoviário. Chamam "mbaias" às manobras para fugirem ao trânsito ordenado. Entram por onde querem, como querem e quando querem. Entram aqui e depois vão entrar mais à frente. Quem dá as ordens é o cobrador-gritador, geralmente um garotelho com cara suja e um maço de notas de baixo valor embrulhada nas mãos sebosas. É para facilitar os trocos, tio. Esses garotos nunca guiaram uma bicicleta na vida. São eles que chamam a clientela. Têm voto na matéria. Quando gritam "mbaiaaaa !!!", o motorista não vacila a hora é essa, entra com o "hiace" em qualquer buraco. O mini-autocarro está pejado de gente que aceita expor-se ao perigo dos acidentes, a troco de uns minutos ganhos.
Chegamos em Luanda, como agora se diz; assim mesmo as pessoas falam, mesmo pessoa que afirma ser doutor. Queria vê-los a responderem a umas perguntinhas da professora Gracinda, que me transportou da cabunga à 4ª classe em 71, debaixo do olhar severo da gramática do Relvas. Haveria reguadas na certa, nem com caca de galinha nas mãos se safavam. Mas agora tudo na boa. Afinal sempre se fecha o ciclo da comunicação, o importante é a gente se entendé, né mêmo? Depois tem bom fato italiano fabricado no Brasil, com gravata da "Gucci" trazida na muamba de Xangai, sapatos de pele de lossengue indonésio e o exuberante Land-Cruiser metalizado, este sim, “made-in-Japan”.
Aiué, Luanda fica longe. Ainda por cima, no jogo jogado vale tudo e tudo vale, mesmo picar no olho do outro muadié pra não fazer barreira. Tem até árbitro que apita parece é brincadeira no areal ao meio dia: assinala o penâlti, depois ele próprio marca o golo e nas calmas vai simbora com a bola. Pensa a bola é dele, lhe deram na família dele. Agora ninguém pode lhe cassumbular.
2 comentários:
Pode ser?
Fiquei assim com uma sensaçao um bocado triste, mas com uma grande vontade de ir lá...
O seu relato até xera, tao bem escrito que esta.
'Luanda Fica Longe'
No dia 6 do mês em curso(não sei bem dizer porquê) deu-me uma vontade de reeler os jornais que datam de mais de um ano. Ao abrir a pratileira onde guardo os jornais, a minha visão focou logo no Semanário Angolense, que data de 29 de Dezembro de 2009 com o titulo: JUSTINO É A FIGURA DE 2009.
Ao esfolhar o jornal, na página n° 3, está lá estampada em letras garrafais o titulo: Jornalista Jaime Azulay lança (blogue) na Internet. Uma curiosidade despertou a minha mente, Fui lendo cuidadosamente a matéria e depois de terminado promete a mim mesmo visitar o Jaime Azulay no seu blogue.
Na manhã de hoje, ao entar no site do Club-K eis que lembrei-me do comprisso que havia assumido em visitar o Azulay! Logo a entrada a CASA do Azulay fui recebido com as boas vindas pouco comum entre nós: Luanda Fica Longe
Até concordo(incondicionalmente) consigo e com a nossa amiga Virginia! Pode ser? mas mesmo assim quero lá conhecer e sempre lá ir...Não é que lá é onde o cabrito come mesmo onde esta amarrado? não é que lá os processos tratados por via legal são mais demorosos? não é que lá é onde nasceu a história da gasosa não em lata? não é que lá é onde esta instalado a direção do Pau Grande e niguém faz mesmo nada? não é que lá...épá, Azulay deixa estar m'bora
.........Estamos juntos.........
Nelson Francisco Sul D'Angola
Jornalista
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