terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Joaquim Neves: «In Memoriam»



          O malogrado Kito Neves "Cartucheira" fotografado pelo nosso inseparável Jean Charles no Huambo, um dia depois da tomada da cidade em Novembro de 1994 pelas FAA. Estão bem visíveis as marcas do cansaço da Longa Caminhada de um ano desde Caimbambo. Generais como  Sousa, Matos, Armando, Nunda, Violência, Faceira, Sukissa, Kassoma, os oficiais e soldados das FAA conhecem o valor deste homem íntegro e generoso. Homenagem especial à nossa valorosa Vª Agrupação que nos recebeu no seu seio. "Aqui não há jornalista, cada um cava a sua trincheira". Não há mais palavras, companheiro.

          « ...As pessoas pareciam incrédulas ao ver um civil desembarcar no Huambo. Olhavam-me como se fosse um extra-terrestre de cor esverdeada. Fui recebido pelo jornalista Joaquim Neves, correspondente da Agência de notícias Angop. Ele era uma das poucas pessoas que aparentava calma naquele clima turbulento. A cidade tinha sido bombardeada na véspera com foguetes BM-21 lançados a partir de uma rampa móvel (...) As pessoas pretendiam fugir aà todo o custo antes que acontecesse o pior(...) O Neves estava bem informado sobre o evoluir da situação e pontualizou.me como estavam as coisas no terreno(...) O resto veria depois com os meus próprios olhos(...) Partimos as 2h30 do dia 8 de Janeiro de 1999 da cidade do Huambo para Tchicala-Tcholoanga (...) Nessa madrugada chuvosa, no meio de milhares de soldados de um regimento das FAA chefiado pelo coronel Ngongo Yene, eu e o Joaquim Neves éramos os únicos repórteres num cenário que se estendia até aio Bailundo e Andulo, onde se travavam encarniçados combates desde o início de Dezembro de 1998.
         (...)  Envolvidos num alvoroço incrível começamos a atravessar a cidade entorpecida pelo medo(...) É um princípio incontornável na guerra: as colunas partem sempre pela madrugada, conmo se fosse este o momento supremo para um ritual satânico.
          (...) Estávamos ali, por enquanto em carne e osso, diluídos na disforme massa bélica. Éramos dois repórteres sortudos, ou homens marcados para o derradeiro "click" da vida?
         (...) Iniciamos a marcha barulhenta para Vila Nova. Tanquistas de semblante fechado fazem rugir os motores dos mastondontes pintados de um verde sinistro que se dilui na côr escura da noite. Feixes de luz projectados pelos faróis destapam os vultos sombrios dos artilheiros morbidamente instalados nas torres dos blindados ansiosos de ouvirem a estereofonia dos canhões . É um Regimento autêntico de uma guerra autêntica, insaciável como todas as guerras, imbecil e estúpida como todas as guerras.
          (...) Assustada a cidade não dorme. Dentro da cabine do Unimog pressinto os olhares esbugalhados perscrutando atravès das frestas das janelas. Ouço o bater descompassado dos corações angustiados palpitando no medo e na ansiedade. Engolidos pela escuridão, as silhuetas dos edifícios esventrados por metralha de outras guerras assemelham-se a fastasmas notívagos amaldiçoando a nossa passagem. O ranger das lagartas dos tanques rompe o hímen do silêncio. No negrume da noite violentada, não mais o perfume da estufa calcorreando as escadas do vento, nem o leito de buganvílias floridas envolvendo amantes no húmus da terra fecunda. No ar, apenas o cheiro da guerra. Ela não está longe dali e está sedenta de sangue».

(Extractos das minhas Memórias de um Repórter de Guerra)

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