quinta-feira, 8 de março de 2012

Minhas conversas com um antigo oficial do exército da Unita

Ponto prévio: Não tenho a honra de conhecer pessoalmente o ex-militar das FALA  da Unita com o qual entabulei conversa virtual. Encontramo-nos no Facebook num pequeno debate, que me pareceu interessante. Por isso estou a postá-lo aqui, com o devido respeito. Pelo que me apercebi a pessoa em causa é um patriota angolano que sofreu as agruras num campo de prisioneiros na era colonial e mais tarde aderiu a um dos movimentos angolanos, a Unita, onde serviu como militar.
Como o debate se desenrolou de forma civilizada e frontal, com respeito a cada um, apesar da divergência de opiniões sobre o nosso país, penso que pode ser útil, sobretudo para os mais novos. No entanto, a insistente pedido, decidi retirar o seu nome, embora considere que quando o homem mata a cobra, deve mostrar o pau...e a cobra. Então aí está o conteúdo da conversa:

Mensagem recebida.

8 de Março de 2012 14:30

Meu caro Azulay. Bom dia e firmes convicções.
Eu não concordo com tudo e nem com todas as formas e métodos usados na guerra, de 1974 ao 2002.
O s horrores da guerra sobrepuseram-se aos simples métodos. O ódio do Kaluanda pelo Bailundo: Nós éramos tidos como matumbos e burros. Foi aí onde assentou toda a história. Mesmo hoje o homem de Luanda não aceita ser mandado pelo homem do sul. Foi sempre o tribalismo e a história das raças e descendências que nos limita a fraudes permanentes e partidos que representam a si mesmos. Agora é tudo dinheiro e lugares que não servem para nada nas forças armadas ou polícia.
O dr. Savimbi foi isolado pelo sistema e, foi ele pessoalmente que voltou a fazer frente á inteligência do mpla e dos seus jornalistas e técnicos.
Eu perdi o pai, primos e eu próprio fui preso de guerra. Fui chefe de comunicações com os sul-africanos nos comandos do Kuito kuanavale, com o general wambu.
Quando fui para a mata, nos movimentos de setenta, os homens da Disa dormiam com as nossas irmãs sem sequer baterem a porta. O certo é que parece haver alguma evolução no modo como o mpla se move mas, mudaram somente depois dos tiros começarem a surgir em pleno e feio da escuridão. Só daí! Foi o tiro que abrandou o mpla e a sua tropa. O resto tudo é fachada.
O meu alto cmdte atacava e as forças matavam. E não eram os kamorteiros. Eram homens mais sérios e que ficaram cá em 1992 e trabalharam para a eleiminação do mais velho.

É tanto que depois podemos falar.

Desculpe se fui desrespeitoso na minha última comunicação. Nada é pessoal.

Forte abraço

Minha Resposta.
8 de Março de 2012:

Estimado amigo.
     Li com bastante atenção a sua mensagem. Congratulo-me com a sua sinceridade, dado não nos conhecermos pessoalmente. A sua história, o seu percurso de sofrimento, nada me é estranho e não creio que pertençamos a gerações diferentes. Pelas dinâmicas do próprio conflito, estivemos em lados opostos, sem que isso seja agora motivo de desunião, quando se trata de abordar o nosso destino comum como angolanos. Só numa perpectiva histórica, de reposição de factos e eventos me proponho a penetrar um pouco nestes meandros complexos, que ainda tocam a nossa mui apurada sensibilidade, devido a proximidade de datas em que os factos ocorreram. Um amigo uma vez me disse que falar "destas coisas" é como nadar num lago cheio de jacarés. Claro que achei alguma lógica na analogia, mas enfim, " a people without past is like a tree roots", como dizia o outro. Então que venham os jacarés.
     Por acaso acho-me em condições de afirmar que conheço as origens do nosso conflito angolano. Foi no distante ano de 1975, que recebi a minha primeira arma, antes da independência. Era eu um garoto que tinha acabado o secundário em Novo Redondo. Já lá encontrei os kotas que vinham do maquis , estes, por sua vez, tinham recebido dos seus maiores a responsabilidade de prosseguir a luta. Mas falo do que vivi. Estive nas FAPLA, como oficial, por isso, pode crer que também sofri as agruras da guerra. Devido a minha experiencia, comecei a trabalhar como repórter de guerra. Estive em vários cenários e fiz o que tinha que fazer . Como já escrevi algures , tive a oportunidade de reportar a guerra na sua própria morada e só faltou filmar o diabo a assar sardinhas, como vulgarmente se diz.
     Mais tarde, ganhei as ferramentas suficientes para refletir sobre as verdadeiras causas do conflito entre os angolanos, o que considerei ter sido uma evolução intelectual de minha parte. Ela permitiu me aproximar de uma visão mais racional do sentido das acções militares em que participei e a ver as coisas como um todo. E se alguma coisa aprendi foi que ocorrem determinadas tragédias humanas perante as quais não podemos permanecer indiferentes.
      Conversei com distintos oficiais das FALA , o exército da Unita, alguns deles de alta patente, sobretudo desde o início das ofensivas em Dezembro de 1998 no Huambo, mas antes já tinha falado com outros, por alturas de 1991 e 1992. Em Novembro de 1992 praticamente já se desenrolavam os combates na cidade de Benguela. Eu estava como militar num grupo de combate na zona do Kasseque, quando nos foi ordenado cessar-fogo para que um helicóptero proveniente do Huambo poisasse na Catumbela. Era um Sábado, no princípio da tarde. Este helicóptero trazia a bordo o general Geraldo Sachipengo Nunda. A primeira grande deserção. Recomeçava a purga na alta esfera castrense da Unita, a retoma do que se passou com da prisão de Vakulukuta (ex-chefe do Estado-maior) em 1984, do Valdemar Chindondo (então coronel) e do próprio general Chiwalee (então brigadeiro), acções ordenadas pelo Dr. Savimbi.
     Nos finais de 1999, no que se seguiu ao desfecho da batalha do Andulo, conheci outros mais: o coronel Boaventura Cangundo chefe das Operações da III Brigada capturado no dia 22 de Dezembro durante a batalha do Cunhinga (ex-Vouga). Nos dias 8 e 10 de Novembro de 1999, falei com  o general Jacinto Bândua chefe da logística estratégica que acabava de fugir do Andulo caminhando 16 dias e 16 noites,. Disse-me que o Dr. Savimbi já não era o mesmo e tinha perdido o sentido racional das coisas. Entrevistamos o general Implacável e  o tenente-coronel Amilcar Marcolino Ngongo em Outubro de 1999, após a tomada do Andulo pelas FAA. Inteirei-me do fim inglório de generais como Antero Vieira que conheci pessoalmente em 1992 em Benguela, o Altino Sapalalo "Bock" que conheci na Jamba em 1991 durante a troca de prisioneiros e o brigadeiro Perestrelo, cuja família se encontra até hoje em Benguela. Também o Tarzan e o Grito. O que fizeram estes homens?
      Algum tempo mais tarde, na última operação no Moxico, em fins de 2001, falei com o brigadeiro Lulú que estava na guarda da coluna presidencial, entrevistei o mais velho general Torres, o mais-velho general Kufuna Yembe, o jovem Pena  e outros tantos. No Luena, poucos dias antes do Natal de 2001, estive com muitos quadros da Unita que se encontravam hospedados na mesma pensão que eu. Conversávamos muito depois do jantar, enquanto no terreno as coisas evoluiam vertiginosamente. Esses militares que afirma terem traído o Dr. Savimbi ajudaram a terminar com o calvário do povo angolano em nome de um só homem e de uma só causa, a dele próprio.
      Como repara, ouvi e vi coisas que me deram um quadro real do que era a Unita militarmente. Creio que tenho uma noção    realista do papel do Dr. Savimbi, em toda a sua trajectória desde os anos 60. Aquilo que se pode chamar a sua ascensão, o apogeu e a irremediável queda.
      Li os livros dos Drs Alcides Sakala, do Jardo Muekália, do Dr. Jorge Valentim, do mais-velho general  Samuel Chiwale. Li o Fred Bridgland, John McCain, Alec Russel e outros tantos, desde os portugueses que estavam na antiga Frente Militar Leste, aos sul-africanos que protagonizaram a "Operação Savanah"  até às invasões e batalhas da Cahama e do Kuito-Kuanavale, na qual o amigo participou. Sem falar na acção fracassada de um comando sul-africano chefiada pelo capitão Winan du Toit contra Malongo, em Cabinda, no dia 21 de Maio de 1985. Du Toit foi capturado pelas Fapla e trazia consigo propaganda para atribuir à Unita a realização do ataque.
       Dito isto,  penso  que deve ser a própria Unita a lidar com o seu passivo e encontrar forças para enfrentar o presente e perpectivar o futuro, como força actuante na consolidação da democracia em Angola. E isso pode ser válido para as restantes forças nacionalistas que lutaram em Angola.
       Já o afirmei e repito, o passado deve ser unicamente referencial e nunca assumir-se como factor activo nas nossas decisões do dia a dia. Estou convicto que do passado já não há muita coisa a justificar, algo que tenha arcaboiço para suportar opções no presente e que, inevitavelmente se vão repercurtir no futuro da Nação.
     Novas formas de pensar podem e devem subsituir-se à simples repetição dos antigos discursos e dogmas  que fizerem furor nas épocas passadas e que cada um de nós aderiu e aplaudiu à sua maneira. Felizmente não me cabe a mim decidir o futuro dos outros, nem de ninguém, salvo da minha família.
     Numa coisa estamos certos, meu estimado amigo: são necessários e urgentes valores tanto por parte de quem tem a responsabilidade de governar, como daqules  que têm a obrigação e responsabilidade  de propor alternativas viáveis, no caso concreto  a oposição democrática patriótica e responsável. Portanto, falo de valores que não se devem resgatar unicamente em período de eleições, mas que sejam valores permanentes que ligam o povo aos seus líderes. Valores capazes de proporcionar às pessoas a possibilidade de escolherem livremente projectos políticos sérios, visionários quanto ao futuro que pretendemos de Justiça e de Paz para todos. Numa Pátria onde cada angolano consiga realizar os seus sonhos.
     Pelo que já sofreu, Angola merece esta oportunidade. Os angolanos de Bem devem entender os reflexos das dinâmicas exógenas. Devem saber lidar com elas de maneira inteligente, de tal sorte que, interpretações e acções erradas não nos façam retornar a um estado de inquietação quanto ao futuro. A frustração de uns tantos e a ansiedade dos demais podem resultar numa combinação de efeitos negativos que ninguém no seu perfeito juízo deseja.

Desculpe o tempo que lhe roubei, mas achei interessante o seu depoimento e quis responder em conformidade.

Um grande abraço do tamanho da nossa querida Angola!

1 comentários:

Soberano Kanyanga disse...

J.Aulai,
So faltou a replica do homem que iniciou a conversa. Gostei dos teus argumentos...