segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crónica para Gabriel Garcia Marquez (1927-2014)

OS CÃES E GALOS DA COLÔMBIA
Jaime Azulay

     Naquele antigamente vivíamos na pobreza sim senhor, mas o nosso Rex não era tinhoso como aqueles cães que para ladrar precisavam encostar a mulumba à parede para não caírem, como acontecia nas cenas caricaturadas pelo tio Garcia quando regressou de uma terra misteriosa do outro lado do mar chamada Colômbia onde viviam uns índios mascadores de pasta de coca para intrujar a fome. Se a tia Zita não chegasse para interromper, o tio falava horas a fio da inverosímil miséria que encontrara numa aldeia embutida pelo demónio no meio da floresta amazónica chamada Ayacucho, muito longe de Bogotá.
     -“É pena vocês não foram lá!”, apontava vagamente na direcção do mar e voltava a desfiar o seu rosário de recordações mirabolantes. Os cães eram incrivelmente magros, apenas conseguiam tossir latidos angustiantes quando se apoiavam nas paredes desbotadas das casas. Em todo povoado era fácil descobrir onde os infelizes caninos dormitavam fugindo do sol abrasador que irradiava inclemência a partir do meio da manhã. No chão ficava a baba peganhenta coberta por uma irritante nuvem de moscas esverdeadas. As carraças, que burras não eram, preferiam arrastar-se no solo a xixilarem no pêlo seco e sarnento daqueles cadáveres ambulantes de quatro patas.
     Coitados dos perros de Ayacucho! Apodreciam vivos, praticamente já não corriam. Quando ousavam andar, os ossos tilintavam dentro do corpo frágil como as lâminas de uma marimba desafinada no interior de uma maleta de zinco: “-clic, clang, clic, clang!”.
     Era assim que se passavam as coisas na floresta onde o tio Garcia esteve lá bem longe na Colômbia, segundo o seu testemunho jurado com solenidade num sonoro toque de lábios nos dois indicadores das maõs cruzados. Abaixo de cão só tinha de ser outro cão sarnento. Mais nenhuma espécie animal poderia reivindicar tal lugar. Por aquelas bandas a escala hierárquica estava tacitamente estratificada num cruel prejuízo para os chamados melhores amigos do homem.
     Em contrapartida, os galos de briga eram venerados por coronéis fanáticos e até por generais viciados em apostas trungungueiras, enquanto pela calada da noite faziam preparativos para o próximo golpe de estado contra os seus camaradas da junta militar instalada em Bogotá. Os galos tinham direito a uma ração suplementar de milho para ganharem ginguzu e manterem a forma até ficarem aptos a enfrentar outros galos valentes e bem treinados.
     Meninos não liguem o que o munhunguero desse Garcia está a vos contar. O mundo é assim mesmo desde que é mundo, cada povo tem a sua cultura, palavras de sapiência da tia Zita, olhos e ouvidos vigilantes nas concorridas palestras do suspeito familiar regressado de uma inquietante e misteriosa aventura zarpada no convés de um cargueiro atracado no porto do Lobito, isso nos idos tempos do caputo, quando ainda estávamos em Novo Redondo.
     Os povos do mundo têm culturas diferentes, os seus hábitos e os seus modos de vida disse a tia com a intenção deliberada de neutralizar a crescente influencia do falante amazónico no seio familiar e na vizinhança, que naquele tempo éramos uma só entidade.
     Afinal o que é a diversidade cultural? Vejam: os Hindus, por exemplo, adoram as vacas sagradas cujo passatempo favorito é mangonharem por cima dos carris do comboio. O maquinista puxa os freios a fundo para não trucidar a vaca sagrada postada na via e lá consegue parar a tempo. Depois detém-se a composição de passageiros que vem de Bombaim e a seguir mais outra oriunda de Calcutá. Isso dura até chegar um trem recoveiro sem travões a mandar todo o mundo para os ares no meio dos ferrolhos retorcidos. Isso é na Índia.
     Enquanto isso, os Japoneses criadores de complexos sistemas electrónicos e fabricantes das mundialmente consagradas “Land-Cruiser” idolatram os lutadores de sumo, uns matulões desajeitados vestidos unicamente com fraldas descartáveis que muita falta fazem as crianças nuas dos países subdesenvolvidos. Contudo, o facto não impede que alguns responsáveis do Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância sejam Japoneses. Na Papua Nova-Guiné o pessoal tem como luxo espetar tacos de madeira nas profundezas das narinas e nem sequer espirram. Depois vão deglutir uma iguaria preparada com os olhos extraídos em fresco dos cadáveres dos familiares.
     Voltando ao caso dos cães da Colômbia ventilado exaustivamente pelo Garcia nas suas palestras diárias com a malta do bairro, é opinião abalizada da tia Zita que se os kambuás de lá chegaram a esse estado de depauperamento é porque também fumam cangonha, ou sei lá essa coisa que falam no rádio, se é cocaína se é quê.
     Nesta altura da conversa faz-se um silêncio impenetrável, o tempo necessário para a tia engatilhar estrategicamente a arma e disparar a cruel pergunta do costume, que tanto constrangimento causava ao palestrante: – “ Em vez de estar a ensinar malandrice nas crianças, qualquer dia o mano Garcia devia mazé nos explicar tintin por tintin o que andou a fazer nessa tal Colômbia”.

1 comentários:

Anónimo disse...

Foi visitar as SUAS PUTAS TRISTES...
A mistura ficou maravilha.abrç companheiro.Nando.