terça-feira, 26 de abril de 2011

Depoimento do Comandante M´beto Traça:os eventos de Novembro de 1975

     Estimados leitores, comunico-vos que tive o grato prazer e a honra de receber do Comandante M´beto Traça, primeiro Delegado do MPLA no então distrito do Kwanza-Sul, com capital na cidade de Novo Redondo, um surpreendente e corajoso depoimento que a seguir transcrevo na íntegra, em resposta aos trabalhos de investigação que tenho publicado. Quando falei com o comandante Mbeto, no final da tarde de Segunda-feira, 25 de Abril de 2011, foi com lágrimas nos olhos de incontida emoção que ouvi a sua voz firme dizer que se me escreveu, não era para alimentar polémicas, mas apenas para resgatar a memória dos filhos de Angola que deram o melhor de si, ou seja, a sua própria vida, para que a Independência fosse conquistada e tivéssemos uma bandeira símbolo da nossa soberania. E não foi fácil chegar até ao glorioso dia  11 de Novembro de 1975.

     No relato do antigo comandante, surgem, como numa galeria, figuras épicas como a lendária guerrilheira Bela Russa de "Cabelos-Côr-de-Fogo", o comandante Herculano Delfino Kassanji "Fundanga" e outros combatentes, muitos anónimos, como os jovens do mini-suzuki metralhado entre Novo Redondo e o Quicombo. Soldados que serviram a causa e que hoje, mesmo tendo sido esquecidos por quem não tem a moral de fazê-lo, permanecerão na memória colectiva do nosso povo generoso, como heróis de um tempo em que Homem se escrevia com H Grande.
     Para o comandante M´beto Traça os meus respeitosos cumprimentos pela amabilidade. Sinceros agradecimentos pelo inestimável contributo que dá no árduo resgate da nossa História contemporânea . Costumo dizer que, aquele não sabe de onde vem, não sabe para onde vai. E tal como me ensinaram um dia, qualquer que seja a sua área de actuação na vida,  Homem que é Homem é como um touro que deixa no chão a marca por onde passa; e nunca se deve confundir Homem de verdade, nem com passarinho nem com lagartixa, que me desculpem os pobres animais.


     "Meu caro Jaime Azulay,
Li a tua ultima crónica na edição de 19 de Abril do Jornal de Angola intitulada "A Bela dos Cabelos Cor de Fogo". Já te ouvi falar na rádio sobre essa época, já li outros textos teus nos jornais e também no teu blog. É pena que não se escreva mais sobre ela. Não se escreve, talvez porque haja muita coisa para esquecer, pelo modo como tenha marcado muita gente. Talvez porque a debandada geral em que esteve muito boa gente seja para esquecer.
     Gostei que recordasses a Anabela de Jesus Gomes, a nossa "Bela Russa". Estou a vê-la a correr com os cabelos cor de fogo ao vento, de AK na mão, em direcção à ponte de S. Joaquim, na tarde do dia 13 de Novembro, momentos antes de a destruirmos para travar o avanço sul-africano. Foi dos últimos combatentes a passar, depois de ter acompanhado o Kassanji na sua vã tentativa de travar os sul-africanos no Chingo…
     Passaram-se 35 anos. É muito tempo! Os velhos de então morreram, os jovens ficaram velhos, as crianças ficaram homens e nasceram muitas crianças!
     Se te escrevo estas linhas não é para provocar qualquer tipo de polémica, até porque não há lugar para tal, mas para te dar algumas informações complementares e fazer certas precisões.
     Conheci bem o Herculano Delfino Kassanji, de seu nome de guerra “Fundanga”. (Obrigado por me dares a conhecer o nome completo). Só começamos a conviver depois de ter sido nomeado Comissário Politico da Frente Centro, cujo Estado-Maior estava em Benguela e que integravam também o Monty, Comandante, o Ngakumona, Logístico e o Basovava, chefe das operações.
     O Kassanji era um personagem cativante. Acreditava com força na Revolução e daquilo que faríamos no país. Estava disposto a ir até ao fim, o que demonstrou em Novembro da nossa independencia. O seu entusiasmo exuberante era contagiante. São as recordações que tenho de uma longa conversa tida uma noite em Benguela, em Setembro de 1975, onde me desloquei depois dos combates contra a FNLA e a UNITA, em que o reforço enviado pelo Kwanza Sul, comandado pelo “Defunto” Faceira, foi decisivo.
     Para enviar essa força para Benguela, de cerca 70 homens, desguarnecemos a Cela (actual Waku Kungo) que no seguimento caiu nas mãos da UNITA e assim se manteve até à invasão sul-africana.
     Como se teriam passado as coisas se a Cela, que fica na margem norte do rio Keve, estivesse em nosso poder? Todas as pontes do rio Keve haviam sido destruídas: primeiro foi a de S. Joaquim, que dá acesso a Porto Amboim; depois a das Cachoeiras, que dá acesso à Gabela e finalmente as Sete pontes, à caminho da Conda!
     Será que os carcamanos sul-africanos teriam conseguido atingir a margem Norte? Será que a invasão pararia aí? Será que a Batalha do Ebo não teria tido lugar? Será que um dia os historiadores abordarão estas e outras questões sobre a guerra?
     No fim da tarde de 11 de Novembro, já com Angola independente, saí de Novo Redondo para Luanda, no meu Mercedes com volante à direita. Ao volante ia o Juca (Necas Moreso), actualmente Brigadeiro das FAA, e o Arrasta, um jovem combatente. Chegados a Luanda, já com a noite avançada dirigi-me para o Palácio da Cidade Alta onde estava a decorrer a recepção oficial, oferecida pelo Presidente da Republica Popular de Angola (RPA). Com muita dificuldade consegui falar com o camarada Presidente Neto que me mandou comparecer no Futungo no dia seguinte, de manhã cedo.
     Na manhã do dia 12 de Novembro, muito cedo, compareci no Futungo mas só por volta do meio-dia fui recebido pelo Presidente Neto, por que um guarda me quis demonstrar quem mandava ali. Levei uns bafos do camarada presidente pelo atraso! As instruções do camarada Neto foram breves e precisas. Continuar a tentar travar por todos meios o avanço sul-africano que agora, como país independente, íamos receber ajuda.
     Sem voltar à cidade , rumamos para o Sumbe pela marginal. À saída da cidade encontrámos um jovem branco envergando uma farda castanha soviética que usávamos, incluindo o chapéu. Perguntamos o que fazia ali e respondeu que ia para o Kwanza Sul combater. Era o Eduardo Kropotkine “Tubia”. Foi das FAPLA e acho que passou à reserva, como capitão, em 1990. Seguiu connosco.
     Perto da ponte do Rio Longa ultrapassamos um lança-foguetes BM-21 (quarenta bocas), que se dirigia para Sul, não sem manifestarmos efusivamente a nossa alegria.
     Quando chegamos a Porto Amboim estavam já a chegar viaturas que tinham começado a recuar de Novo Redondo. Seguimos de imediato para Novo Redondo, onde ainda chegamos com luz do dia. Fomos à Delegação do MPLA onde retiramos alguns dossiers. Pusemos fogo ao resto da papelada. A cidade estava deserta mas sentia-se que por detrás das janelas apagadas havia gente.
     Já era noite cerrada quando o Monty, o Kassanji, o Ngakumono, eu e outros camaradas nos sentámos no Morro do Chingo. Estávamos a conjecturar sobre o inimigo quando vimos os faróis de uma coluna de carros sair de Novo Redondo. Ainda pensamos poderem ser os sul-africanos, mas não. Eram sobretudo portugueses que não quiseram seguir o MPLA no recuo e optaram ficar e, naquele momento, dirigiam-se para a Pescaria do Madureira.
     Seguimos para Porto Amboim onde chegamos debaixo de chuva intensa o que era bom. O terreno argiloso empapado iria impossibilitar o avanço sul-africano se este optasse abandonar o asfalto.
     Já altas horas da noite o Comandante Arguelles, com outros oficiais cubanos, vieram a nossa casa para avaliação a situação e tomada de decisões. Presentes também os membros do Estado-maior da Frente Centro. Eu já não dormia há duas noites, razão porque tive dificuldade em manter-me acordado e não me lembro muito bem o que foi dito.
     Logo que me levantei na manhã de 13 de Novembro fui informado que o Monty e o Ngakumono tinham partido para Luanda, pela calada da noite e sem se despedir, e que o Kassanji tinha ido para a zona das pescarias, onde estava alojado o pessoal que recuara, incluindo os militares. Por volta das 10 horas dirigi-me a Novo Redondo, com o Juca, Tubia e Arrasta. Novo Redondo estava deserta mas havia ainda gente a abandonar a cidade.
     Dirigimo-nos à Cadeia comarcã, que fica no limite da cidade na saída para o Lobito, onde tínhamos presos da FNLA. Mandei libertá-los e ordenar-lhes que se apresentassem em Porto- Amboim. O armamento e outros equipamentos lá armazenados foram evacuados num camião basculante “Scania” da JAEA.
     Quando íamos a regressar ao centro passou um mini-jeep, em direcção à saída da cidade, com quatro jovens fardados. Estávamos nas imediações do Centro Social quando um obus de “mwana kaxito” (Grad-1p) foi disparado frente ao mercado. Quem o disparou não foi o Kassanji, mas o Rui Graça “Lupuka”, também, “camusumbe”, que fora guerrilheiro na 2ª Região.
     Quando chegamos ao Morro do Chingo encontramo-nos com o Comandante Raúl Diaz Arguelles com quem comentamos a situação. Informou-nos que ia partir para a zona do Condé (comuna situada entre a Gabela e a Kibala), onde se estavam a concentrar os reforços cubanos. Estávamos a observar com binóculos uma coluna de fumo negro na zona da cadeia, quando ouvimos o silvar do primeiro obus de 8-8, que atingiu a encosta do morro. Já estávamos dentro do carro quando que o segundo obus rebentou para além da estrada. O Mercedes, que era diesel, tinha dificuldade em desenvolver, por estarmos numa subida, para desespero do Juca, que tinha o acelerador ao fundo e, claro está, para todos nós. A artilharia sul-africana estava a instalada na saída da cidade para o Lobito.
     Rumámos para Porto Amboim. Na zona da Gangula encontramos uma coluna de combatentes a pé dirigindo-se para Novo Redondo. A frente vinha o Kassanji. Desci do carro e conversámos. Contei-lhe o que passáramos momentos antes. Expliquei-lhe a situação. Que uma tropa de infantaria, sem apoio de artilharia, nada conseguiria fazer. Não o consegui convencer ou talvez ele soubesse já o que ia encontrar. Talvez não quisesse o seu nome associado ao dos seus colegas do EM da Frente Centro que, pela calada da noite abandonaram a Frente e os seus homens para se refugiarem em Luanda.
     Kassanji pediu-me o meu cantil. Dei-lhe. Lembro-me que levava ao pescoço um lenço creme. O Tubia pediu-me para ir com o Kassanji. Autorizei. Foi a ultima vez que vi o Kassanji com vida. Segui para Porto Amboim.
     Nessa tarde quando nos preparávamos para destruir a ponte de S. Joaquim começaram a chegar os sobreviventes que nos contaram que a artilharia os dizimaram quando tentavam descer o Morro do Chingo. O Kassanji e muitos outros não regressaram.
     A Bela Russa, a menina-combatente de 14 anos regressou. Um cancro venceu a nossa guerrilheira em 2006, em Lisboa.
     Em Fevereiro de 1976 dirigi-me ao alto do Morro do Chingo com vários camaradas. Encontramos varias ossadas dispersas num perímetro bastante grande. Creio ter reconhecido os restos mortais do Kassanji pela farda e pelo lenço creme que levava ao pescoço. Tirei fotografias, que ainda conservo, e enterramos todas ossadas in loco, em conjunto. Quem eram aqueles camaradas que tombaram com o Kassanji a defender esta Pátria? Alguém alguma vez os mencionou? Onde e quando?
     Jaime, só são algumas notas que fui rebuscar na minha memória e que achei que era melhor as partilhar, depois de ler o teu artigo.

Recebe um forte abraço do
Mbeto Traça
In tempo: Não era minha intenção escrever tanto. Desculpa se for fastidioso ler.































7 comentários:

Nando disse...

Depois de tantos anos mantenho intactos na memória esses dias terriveis de frustação.Conheci bem a maior parte dos camaradas de que fala, o corpolento Ngakumona,(com quem sempre discutia porque poupava muito nas munições) o Basuvava com quem trabalhava nas operações, tambem o Pepe, o Chipenda, o Segão, o Pena, o Chinganeca e claro o Kasssanji entre outros. Fui ferido na Caluita(Balombo) onde ao que sei, se perdeu o primeiro cubano (Rigoberto Balcinde)um oficial instrutor e fui levado para Luanda à ultima da hora pela Chimboa levado pelo Victor enfermeiro.Se não fosse ele teria ficado no hospital em Benguela onde se "esqueceram de mim".Lembro que foi o cte Mbeto Traça quem mandou arranjar combustivel para poder ser evacuado pois chegados ao Sumbe a gasolina acabou.Passados 12 anos no dia 23 de Julho de 1986 foi o então Ten.coronel Mbeto Traça quem como chefe do DOM assinou o meu passaporte de disponibilidade.Estive com ele algumas vezes durante esses anos e a opinião que tinha é a que mantenho hoje, um homem de caráter que merece bem as estrelas de general,ao contrário de outros que naquela altura e mesmo depois não eram nada xambetas a dar corda às botas quando a chuva era de pregos.Aos que já partiram e foram muitos,os meus respeitos e gratidão.
Nando

Fernando Manuel de Almeida Pereira disse...

Continuo muito agradado ao ler isto tudo, neste devolver da memória. E tanta falta que faz a memória.
Um abraço
Fernando Pereira

Anónimo disse...

Jaime por favor não espere mais. compile todos os seus textos e ponha cá fora um livro de preferência ilustrado com fotos

AI CARAMBA! disse...

É preciso saber mais história. Angola nasceu de um povo justo e bonito muito mal tratado pelos de fora. Ainda sofre tanto por isso...
Por favor, mais histórias da História!

Anónimo disse...

foi bom ler esse blog.. certamente fez-me recordar algo que estava esquecio na minha memoria,
andei no CIR de Nova Lisboa tinha como nome camarada limao... tambem convive com quase todos os nomes ai mencionados porque grande parte dessas forcas vinha do CIR de Nova lisboa entre outros camarada kassaji, Monti,etc.
E em memoria de todos aqueles que ai morream ou se sacrificaram aqui vai o meu saudoso abracao.
E bom tambem dizer que nem tudo era guerra triste,mas tambem tivemos momentos de alegria e fizemos muitas amizadas recordo-me do camarada salazar meu companheiro de tenda no CIR.
God bless
xi no coracao para todos os camaradas desse precioso tempo
xau limao

Sarah Angelica Holding S A disse...

Estive com o comandante M Beto Traça quando ele derrubou o pode sobre o rio keve impedindo os sul africanos de atravessarem para o outro lado do rio, meu nome é pioneiro Tyno estou com esse nome que ele mesmo me deu ate hoje

Anónimo disse...

Descobri este texto porque por vezes perco-me a pesquisar a história de Angola verdadeira, contada por quem a viveu.
Sou filho de Angolanos nascidos no Cuanza Sul (Novo Redondo e V. N. do Seles na altura), e nasci em Portugal. Os meus pais e avós saíram de Angola pouco depois da independência e cresci rodeado de Angolanos e das histórias dessa terra mágica, onde acabei por ir viver durante 7 anos e onde passei talvez os melhores anos da minha vida.
Fiz questão de ir ver por mim a terra que os meus pais ainda amam e entendem como a sua terra.
Alguns dos nomes aqui mencionados no texto já conhecia porque o meu pai já me tinha falado neles, alguns ele conhecia-os pessoalmente e um nome mencionado eu próprio conheci também.
Regressei a Portugal há uns anos e não há um dia em que não pense em Angola, o potencial que continua a ter e o que poderia ter sido caso todo o processo de independência tivesse sido tratado de forma diferente, pensando principalmente no povo.
Tive a oportunidade de viajar pelo país muitas vezes incluindo muitas volta de mota, sozinho, e digo a toda a gente que é impossível descrever a beleza e variedade desse país, além da hospitalidade e simpatia do povo fora das grandes cidades.
Aos Homens que caíram a defender o seu país o meu total respeito, eram outros tempos em que esses com H faziam o que achavam certo mesmo sabendo que podiam nunca mais ser vistos nem ninguém nunca saber o que lhes aconteceu.